Sinopse

Entrei no século XXI já morando em Praga. Vários acontecimentos extrasensoriais se passaram na minha mente e pele em Praga. Todos os amigos,
amigas e familiares que nos visitavam queriam, é claro, conhecer o Castelo de Praga. Foi por isso que, em horas vagas, me transformei em um guia amador da cidade e do seu castelo.

Numa dessas peregrinações turísticas pela cidadezinha do castelo, com suas vielas e ladeiras, entrei com amigos em uma pequena loja de souvenir, com pinta de loja de arte. Tomei um susto quando me deparei, por trás do balcão principal, com o quadro que emoldurou a cômoda onde minha mãe guardava lençóis e toalhas, ao lado da cama onde dormi por muitos anos. Tratava-se de um anjo da guarda, em tons de verde e rosa, abrindo suas asas protetoras sobre um menino que tentava apanhar uma bola, à beira de um precipício.

Não era um quadro parecido com o meu. Era uma réplica, em melhor estado ainda do que aquele que encantou a minha infância. Este pequeno quarto da minha casa era muito especial por três motivos: tinha ligação direta com o quarto dos meus pais; havia um janelão que se abria para a varanda, em cima da mesa de passar roupas, onde a Maria lavadeira passava metade do dia cachimbando, soprando brasas e papeando comigo e, finalmente, lá estava um armário grande e gordo, com todos os objetos quebrados e livros e revistas, segregados do armário da biblioteca principal, que ficava no escritório, dividido em partes iguais para os livros do meu pai e os livros da minha mãe, em compartimentos diferentes.

Depois do cinema, a leitura era o meu passatempo favorito, naqueles tempos desprovidos de televisão, kindles e celulares. Como todo menino comecei minhas leituras pelo Pequeno Príncipe e O Diário de Anne Frank. Avancei para os livros de juventude do meu pai: uma linda coleção de aventuras, com capas pintadas em laranja e azul, na qual se destacavam Scaramouche, Beau Geste, Os Três (quatro) Mosqueteiros, e
muitos outros clássicos da literatura ocidental. Como a cama do meu irmão mais velho, Paulo, já havia sido desabilitada, no amplo quarto onde dormíamos, junto com meu segundo irmão Roberto, insisti com minha mãe, por já ser grande e adulto, aos 10 anos, em me mudar para aquele pequeno quarto protegido por um anjo da guarda, e perto dela e da Maria. Paulo estudava na UNB, em Brasília, quando forças policiais e militares invadiram o campus da Universidade e a trancaram por um certo período. Nesta volta temporária dele tive que abrir mão do meu anjo da guarda por algumas semanas, mas em troca ganhei muitos livros e revistas da UNB, que lá ficaram, depois do regresso do Paulo para Brasília, onde se graduou em Administração de Empresas, um curso para o futuro, naqueles idos dos anos 60. Mas o que mais me fascinava naquele armário era uma coleção
de livros de capas brancas e grossas:  Prêmios Nobel de Literatura. Li todos, começando pelo mais apetitoso para uma criança: O Pássaro Azul, de Maurice Maeterlinck.

Sobre o autor

Miguel Gustavo de Paiva Torres, alagoano, diplomata de carreira, fez os seus estudos em Maceió e entrou no serviço diplomático em 1976. Serviu em Brasília, Costa do Marfim, Alemanha, Portugal, México, República Tcheca, Indonésia e Cuba. Foi embaixador na República do Togo e fez diversas missões diplomáticas em países como Índia, Paquistão, Líbia, Kuwait, Panamá e Santa Lúcia. Dedicou grande parte de sua carreira às relações do Brasil com a África e foi Ministro Conselheiro na Embaixada em Havana entre 2003 e 2006.

Escritor, foi também jornalista em Maceió e no Rio de Janeiro antes de prestar concurso direto para a carreira diplomática, em 1975, no Rio de Janeiro. É autor de O Visconde do Uruguai e a Consolidação da Política Externa do Império, publicado pela editora da FUNAG, em 2011; Memória dos Trópicos, editora Albatroz, 2018; e Tempos Bicudos, editora Querida Prudência, Maceió, 2019.